Ambam, sábado, 4 de maio de 2002.

 

Caríssimo P. Valdevir,

 

Eu não escrevo muitas vezes, mas pensei que não poderia deixar passar esta ocasião sem mandar uma mensagem particular para o senhor e para a Paróquia. Este ano, no dia da festa de Pentecostes, eu celebro 20 anos de consagração missionária. Olho para traz com alegria e gratidão e neste olhar é impossível não recordar o início de tudo: as manhãs de formação, os encontros de jovens, o grupo vocacional, a velha igrejinha da Luz. Lembro-me de muitas coisas, outras a memória já cancelou. Lembro-me de muitas pessoas que estavam presentes na Igreja de São Francisco Xavier, na Vila Missionária, há 20 anos atrás e que agora já chegaram na Pátria definitiva. Lembro-me da Tereza, Irmã Emanuela, que tanto rezou por mim naquele dia.

Nestes 20 anos vivi muito. Às vezes tenho impressão que foram bem mais do que duas décadas. Por outro lado, tudo passou tão rápido. Os primeiros anos, como missionária no Brasil. A pobreza extrema dos “bóia-frias” com os quais trabalhei no interior de São Paulo, em Assis. Foram dois anos muito intensos de trabalho e de vida de comunidade. Eu era muito jovem e tinha saído do noviciado apenas há alguns meses: aprendi que a liberdade, tanto desejada, requeria também responsabilidade; aprendi a importância da vida comunitária para que a missão seja verdadeiro testemunho de Deus Pai, Filho e Espírito Santo.

Macapá, 3000 km de São Paulo, foi a segunda etapa do caminho. Este era um Brasil que eu não conhecia! Tudo me parecia tão diferente e exigia de mim um exercício de desprendimento da minha realidade para me fazer macapaense com os macapaenses. Foi a minha primeira experiência de encontro com uma cultura diferente da minha. No trabalho de formação das comunidades de base a nível diocesano, aprendi a conhecer a força da Palavra de Deus; descobri como o Espírito Santo guia os simples para que eles compreendam o mistério do amor de Deus; comecei a entrever que na missão a gente recebe muito mais do que dá.

Foi em Macapá que recebi a notícia, tanto esperada: eu tinha sido destinada para a África, Camarões.Vivi meses intensos, repletos de sentimentos contrastantes. Eu estava muito feliz com a minha destinação, mas custava-me deixar meu povo ao qual tanto me afeiçoara. Não via a hora de partir e morria de medo ao mesmo tempo. Eu fazia festa pela realização do meu sonho e tremia diante da realidade.

Um velho canto missionário diz: “Partir não é o tudo certamente, há quem parte e nada dá, busca só a liberdade. Partir mas com a fé no seu Senhor, com o amor aberto a todos leva o mundo a salvação”. Partir. Deixar o Brasil, enfrentar o desafio de aprender uma nova língua, ir para outros paises. Itália, França e finalmente CAMARÕES. Aprendi que é impossível ser missionária sem humildade e disposição a carregar a cruz do quotidiano: dificuldade para a aprender a língua local, doenças, solidão, incompreensão, sentimento de inutilidade. Aprendi o valor das coisas pequenas, a importância de dar tempo às pessoas. Aprendi que a missão não me pertencia, mas que eu era chamada a dar uma mão no projeto que Deus levava adiante. Aprendi que sem oração a missão é vazia.

Quando me parecia que, após três anos e meio de luta, eu finalmente tinha chegado nos Camarões; quando me parecia que eu estava pronta para começar a dar o melhor de mim mesma a esta missão, uma outra aventura se apresenta no meu horizonte: os estudos. Eu sempre gostei de estudar, mas naquele momento queria voltar para os Camarões, queria continuar a viver a missão. Deus, porém, tinha pensado de outro modo: nove, quase dez anos de estudos em Roma. Quantas lágrimas nos primeiros meses! Eu me sentia como uma traidora, pensava que minhas superioras não deviam ter me pedido um tal sacrifício. Aos poucos, descobri que é possível continuar a ser missionária até mesmo em Roma, na universidade, no meio de livros e professores. Aprendi que Deus é o Senhor da minha história e que ele conhece o tempo bom para cada coisa. Aprendi a ser acompanhada e acompanhar as pessoas nos seus sofrimentos mais profundos e escondidos. Descobri quanta pobreza se esconde atrás da opulência. Deparei-me com a riqueza e o desafio de viver com tantas culturas diferentes ao mesmo tempo.

No final dos estudos, um momento de grande incógnita: e agora José? Voltar para a África, para o Brasil? Ficar na Itália? Tudo parecia possível, tudo me atraia, tudo me fazia medo. Mas os Camarões me esperavam, Ambam me esperava de volta após uma longa ausência. Voltei para Ambam, mas é como se chegasse pela primeira vez. Voltei 10 anos mais velha; 10 anos mais experiente. Às vezes digo que tenho saudades de quando era “criança”. De fato, durante o meu primeiro período nos Camarões, não precisava me preocupar com tantas coisas administrativas, todo o meu tempo era dedicado ao trabalho pastoral, era bem mais gratificante. Estou aprendendo que, se eu podia viver a missão em outro modo antes, era porque alguém fazia por mim o que agora sou chamada a fazer pelos outros.

E assim, vinte anos se passaram. Tenho tanto a agradecer. Recebi muito de tantas pessoas, mas, graças a Deus, pude também dar muito. Agradeço a Deus pelos encontros dos quais estes 20 anos foram tecidos. Encontros que me fizeram crescer, que me deram ocasião de proclamar a Palavra, que me causaram sofrimentos, que me ajudaram a me conhecer melhor. Encontros que me ensinaram que sou amada e enviada a amar. Encontros nos quais, em modo mais ou menos intenso, pude descobrir a presença criadora, libertadora e santificadora de Deus.

Façam festa comigo! Agradeçam a Deus por tudo o que ele fez por mim! E juntos, peçamos também perdão por todas as vezes que eu não fui e não sou capaz de amar... esta é a maior traição à missão recebida.

Se você esta recebendo esta mensagem certamente é porque também faz parte desta história. Agradeço a Deus por isso também.

Um grande abraço,

Com carinho,

Regina, Missionária da Imaculada.